A CARTA DO ALÉM.
Caríssimo Leitor, você conhecerá a impressionante história de uma jovem alemã falecida em 1937, que depois de morta comunicou a uma amiga, por permissão especial de Deus, seu destino eterno.
Entre os papéis deixados por uma jovem que morreu num convento como freira, foi encontrado o seguinte depoimento:
“Tinha eu uma amiga. Quer dizer, éramos mutuamente achegadas como companheiras e vizinhas de trabalho no mesmo escritório M.
Quando mais tarde Âni se casou, nunca mais a vi. Desde que nos conhecêramos, reinava entre nós, no fundo, mais amabilidade que amizade.
Por isso eu sentia dela pouca falta, quando, após seu casamento, ela foi morar no bairro elegante das vilas, bem longe do meu casebre.
Quando no outono de 1937 passei minhas férias no lago Garda, minha mãe escreveu-me, em meados de setembro: “Imagine, Âni N. morreu. Num desastre de automóvel perdeu a vida. Ontem foi enterrada no cemitério do Mato”.
Essa notícia espantou-me. Sabia eu que Âni nunca fora propriamente religiosa. Estava ela preparada, quando Deus a chamou de repente?
Na outra manhã assisti na capela da casa do pensionato das irmãs, onde eu morava, à santa missa em sua intenção. Rezava fervorosamente por seu descanso eterno e nessa mesma intenção ofereci também a Santa Comunhão.
Mas o dia todo eu sentia certo mal estar, que foi aumentando mais ainda pela tarde.
Dormia inquieta. Acordei de repente, ouvindo como se sacudida a porta do quarto. Liguei a luz. O relógio, no criado mudo, marcava meia noite e dez minutos. Nada, porém, eu podia ver. Nenhum barulho havia na casa. Apenas as ondas do lago Garda batiam, quebrando-se monotonamente, no muro do jardim do pensionato. De vento, nada eu ouvia.
Tinha eu, todavia, a impressão de que ao acordar eu tivesse percebido, além das batidas na porta, um ruído como que de vento, parecido ao do meu chefe de escritório, quando mal humorado me atirava uma carta amolante sobre a escrivaninha.
Refleti um momento, se devia levantar-me.
Ah! Tudo não passa de cisma, disse-me resoluta. Não é senão produto de minha fantasia sobressaltada pela notícia da morte.
Virei-me, rezei alguns Pai-Nossos pelas almas, e adormeci de novo.
* * *
Sonhei então que me levantava de manhã às 6 horas, indo à capela da casa. Quando abri a porta do quarto, dei com o pé num maço de folhas de carta. Levantá-las, reconhecer a escrita de Âni e dar um grito, foi coisa de um segundo.
Tremendo, segurei as folhas nas mãos. Confesso que fiquei tão apavorada, que nem podia proferir o Pai-Nosso. Fiquei presa de uma quase sufocação. Nada melhor que fugir dali e ir-me para o ar livre. Arranjei malmente os cabelos, pus a carta na bolsa e saí à pressa de casa.
Fora, subi o caminho que seguiu tortuoso para cima, por entre oliveiras, loureiros e quintas de vilas, e para além da mundialmente célebre estrada “Gardesana”.
A manhã despontava radiante. Nos outros dias eu parava a cada cem passos, encantada pela magnífica vista que me ofereciam o lago e a magnificamente bela ilha Garda. O suavíssimo azul da água refrescava-me; e como uma criança olha admirada para o avô, assim eu olhava sempre admirada de novo o cinzento monte Baldo que se ergue na margem oposta do lago, crescendo de 64 m acima do nível do mar até 2.200 m de altura.
Hoje eu não tinha olhos para tudo isso. Depois de caminhado um quarto de hora, deixei-me cair maquinalmente sobre um banco encostado em dois ciprestes, onde, no dia anterior, eu tinha lido prazerosamente “A donzela Teresa”. Pela primeira vez eu via nos ciprestes símbolos da morte, coisa que neles nunca reparava no Sul, onde tão frequentemente se encontram.
Peguei a carta. Faltava-lhe a assinatura. Sem a mínima dúvida era a escrita de Âni. Nem mesmo faltavam nela a grande “S”-voluta, nem o “T” francês, a que se havia acostumado no escritório para irritar o Sr. G.
O estilo não era o dela. Pelo menos não falava como de costume. Sabia ela tão amavelmente conversar e rir com seus olhos azuis e seu gracioso nariz.
Somente quando discutíamos assuntos religiosos é que ela se tornava mordaz e caía no rude tom da carta. (Eu própria entrei agora na excitada cadência da mesma).
Eis aí
A CARTA DO ALÉM DE ÂNI, V.,
Palavra por palavra, tal qual a li no sonho:
“Clara! Não rezes por mim. Sou condenada. Se te comunico isso e se a respeito de algumas circunstâncias da minha condenação te dou pormenorizadas informações, não creias que eu o faça por amizade. Aqui não amamos a ninguém mais. Faço-o, como “Parcela daquele Poder que sempre quer o Mal e sempre produz o Bem”.
Em verdade, eu queria também ver-te aqui, onde eu para sempre vim parar. [S. Tomas de Aquino, Summa Theológica (S. Th.) Supplementum (Suppl.) q. 98, a. 4: “Os réprobos querem que todos os bons sejam condenados”.]
Não estranhes esta minha intenção. Aqui pensamos todos da mesma forma. A nossa vontade está petrificada no mal – no que vós chamais “mal”. Mesmo quando fazemos algo de “bem”, como eu agora, descerrando-te os olhos sobre o Inferno, não o fazemos com boa intenção.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 1: “Neles o autodeterminado querer é sempre de todo perverso”.]
Lembra-te ainda:
Fez 4 anos que nos conhecemos, em M. Tinhas 23 anos e já trabalhavas no escritório havia meio ano, quando lá entrei.
Tiravas-me bastante vezes de embaraços; davas-me a mim, principalmente, frequentes bons avisos. Mas que é que se chama “bom”!
Eu louvava, então tua “caridade”. Ridículo… Tuas ajudas provinham de pura ostentação, como, aliás, eu já suspeitava.
Nós aqui não reconhecemos bem algum em ninguém!
Conheceste minha mocidade. Cumpre preencher, aqui, certas lacunas.
* * *
Conforme o plano de meus pais, eu não devia nunca haver existido. Aconteceu-lhes um descuido, a desgraça da minha concepção.
Minhas duas irmãs já tinham 15 e 14 anos, quando eu vim à luz.
Oxalá nunca eu tivesse nascido! Oxalá pudesse eu agora aniquilar-me, fugir a esses tormentos! Não há volúpia comparável à de acabar minha existência, como se reduz a cinzas um vestido, sem mesmo deixar vestígios.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 3, r. ib. ad 3: “Enquanto a inexistência liberta de uma vida de terríveis castigos, seria ela para os condenados um bem maior do que sua miserável existência… Assim desejam a não existência.”] Mas é preciso que eu exista; é preciso que eu seja tal como eu me tenho feito: com a falha total da finalidade da minha existência.
Quando meus pais, ainda solteiros, mudaram-se da roça para a cidade, perderam o contato com a Igreja.
Assim era melhor.
Mantinham relações com pessoas desligadas da religião. Conheceram-se num baile e viram-se “obrigados” a casar meio ano depois.
No ato do casamento pegaram neles só algumas gotas de água benta, suficientes apenas para atrair mamãe à missa domingueira raríssimas vezes por ano.
Nunca ela me ensinava a rezar direito. Esgotava-se nos cuidados de cada dia, ainda que a nossa situação não fosse ruim.
Semelhantes palavras como rezar, missa, água benta, igreja, só escrevo com íntima repugnância, com incomparável nojo. Detesto profundamente os frequentadores de igreja, assim como todos os homens e coisas em geral.
Tudo se nos torna tormento. Cada conhecimento recebido ao falecer, cada lembrança da vida e do que sabemos, se transforma numa flama incandescente.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 7, r.: “Nada há nos réprobos, que não lhes seja matéria e causa de tristeza… Assim dirigindo sua atenção sobre coisas conhecidas”.]
E todas essas lembranças nos mostram….CONTINUA NO PRÓXIMO POST
*** Imprimatur do original alemão; Brief aus dem Jenseits: Treves, 9/11/1953. N. 4/53. Aprov. Ecles. Deste opúsculo: Taubaté – est. De S. Paulo – 2/11/1955.
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